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A enchente

Silvedora e Sezefredo se encontra­ram, se gostaram, se casaram, se enlearam num xodó de fazer medo. Medo de os outros botarem mau olho e o amor gorar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, ma­is amor no coração. De noitinha, de madrugada, toda hora para eles era hora – um interminável saboroso agarra. Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam.

         Morantes num pé de serra, ele ia bem cedo para o roçado, vol­tava embalado no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.

         Chegava com a enxada no ombro, o corpo suado, um asso­bio na boca, largava a tralha no terreiro e ti­bum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as ale­grias da noite. Só eles os dois e as estrelas no céu. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.

          Só que tem que mas porém Silvedo­ra não por acaso de repente avolumou. Sezefredo e ela então por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e guapo e recebeu na pia o nome de Archimedes, primogênito de uma fieira de meninos e meninas. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía. 

          Até que deu aquela enchente doida. Duas semanas chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxur­radas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato ro­lando embolados na correnteza, e não parava de chover.

         Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas. E o rio crescendo, rosnando.

         O valente marido agitado pra-lá-pra-cá com uma corda na mão. O pé de manga ao lado tinha tronco forte, havera de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho, amarrou na casa em função de reforço. Silvedora e a criançada chorando, rezan­do.

           Ele, porém, Sezefredo, de mau jeito escorregou, caiu, rodopiou, levado foi aguaceiro abaixo. A meninada e a mãe olhando sem nada po­der fazer. Parou três dias depois a chuva. Silvedora salva e a ninhada toda, todavia viúva.

           Só que nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Re­começar. Mas Deus é bom e acode. Um passante a cavalo trouxe o recado: 

          – Dona Dora: é pra senhora prepa­rar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pra janta. Ele mandou dizer que não morreu não. Escapou montado num pé de bananeira e depois ficou trepado numa pedra esperando o rio desencher um pouquinho pra ele descer de lá. Tá vindo a pé aí atrás.

           Foi assim chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças saírem de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde veio um novo fruto, chamado Pluvioso Felício, que ao nascer já encontrou a casa repintada, a lavoura refeita, o curral e o gali­nheiro de pé. 

A. A. de Assis
Foto – Reprodução

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